A cooperação sempre foi um tema central na filosofia e nas ciências sociais, especialmente em teorias que exploram a intencionalidade coletiva. Tradicionalmente, essas teorias argumentam que a cooperação requer conhecimento mútuo, intenções compartilhadas e comprometimento conjunto. Mas e se esse modelo for um engano? E se empresas, governos e grandes organizações funcionarem de maneira coordenada sem que seus membros realmente interajam ou compartilhem objetivos de forma consciente?
Afilando esse debate, a pesquisadora Katherine Ritchie propõe uma abordagem diferente: a cooperação mínima, baseada na existência de papéis bem definidos dentro de estruturas organizacionais. Nesse modelo, não é necessário que cada membro conheça seus colegas ou suas intenções; basta que desempenhem suas funções dentro de um sistema bem estruturado.
Isso significa que a cooperação pode existir mesmo quando os indivíduos apenas cumprem regras pré-estabelecidas, sem necessariamente ter um envolvimento consciente no processo colaborativo.
A Ilusão da Cooperação: Como Grandes Organizações se Estruturam
Autores como Michael Bratman, Margaret Gilbert e John Searle argumentam que a cooperação envolve um compromisso conjunto e conhecimento compartilhado entre os envolvidos. Isso faz sentido para interações pequenas e diretas, como um grupo de amigos organizando uma viagem. Mas e quando falamos de estruturas gigantescas, como parlamentos, multinacionais ou forças de segurança internacional?
Pense em uma empresa global como a Stefanini, que recentemente anunciou uma reestruturação na liderança de sua área de People & Performance. Nessa empresa, cada setor possui papéis claros e responsabilidades definidas. Os funcionários de diferentes países podem não se conhecer, mas suas funções estão interligadas. O sistema não depende de um vínculo pessoal entre os indivíduos, e sim de um modelo de gestão que define processos e expectativas de forma estruturada.
Isso também acontece no setor público. Recentemente, o Brasil participou da 1ª Reunião das Redes Latino-Americanas na Luta contra o Crime Organizado, em São Paulo. Delegados, juízes e autoridades de diferentes países trabalharam juntos para estabelecer mecanismos de combate ao crime transnacional. Entretanto, nenhum deles precisa compartilhar crenças ou intenções pessoais. O que os une é a existência de protocolos e legislações que garantem a interconectividade entre suas ações.
Cooperamos ou Apenas Seguimos um Roteiro?
A cooperação tradicional, baseada em intenções compartilhadas e conhecimento mútuo, pode ser apenas uma parte da história. Na prática, grandes sistemas funcionam sem que seus membros precisem sequer interagir.
Em um mundo cada vez mais conectado e tecnologicamente mediado, a visão de Ritchie desafia a noção de que a cooperação depende de fatores psicológicos. Em vez disso, ela propõe que as estruturas organizacionais e os papéis definidos podem ser suficientes para garantir a funcionalidade de empresas, governos e até mesmo sistemas de segurança global.
Se isso é cooperação ou apenas execução de funções, fica a questão: até que ponto realmente colaboramos, ou apenas seguimos um roteiro predefinido?
Notas:
Michael Bratman, Margaret Gilbert e John Searle são filósofos contemporâneos que contribuíram significativamente para o estudo da intencionalidade coletiva, cada um com abordagens distintas. Aqui está um resumo de suas trajetórias e contribuições:
1. John Searle
Nacionalidade: Estadunidense
Área de atuação: Filosofia da mente, filosofia da linguagem e filosofia social.
Contribuição à intencionalidade coletiva:Desenvolveu a ideia de que a realidade social é construída por meio de intencionalidade coletiva. Para Searle, instituições sociais (como dinheiro, governos ou casamentos) só existem porque grupos de pessoas atribuem um status funcional coletivo a objetos ou ações.
Conceito-chave: "Atos de fala" e "intencionalidade coletiva como base da realidade social".
Obra relevante: The Construction of Social Reality (1995).
2. Michael Bratman
Nacionalidade: Estadunidense
Área de atuação: Filosofia da ação, ética e filosofia do direito.
Contribuição à intencionalidade coletiva:Propôs uma teoria da ação planejada compartilhada, argumentando que a cooperação depende de:
Compromisso mútuo entre os membros do grupo.
Interdependência de intenções individuais (cada um planeja suas ações considerando as dos outros).
Conhecimento comum dos objetivos coletivos.
Conceito-chave: "Intenção compartilhada como rede de planos interligados".
Obra relevante: Shared Agency: A Planning Theory of Acting Together (2014).
3. Margaret Gilbert
Nacionalidade: Britânica
Área de atuação: Filosofia social, teoria da ação coletiva.
Contribuição à intencionalidade coletiva:Defende que grupos formam sujeitos plurais por meio de compromissos conjuntos, onde indivíduos se vinculam mutuamente para agir como uma unidade. Para ela, a intencionalidade coletiva não é apenas a soma de intenções individuais, mas um compromisso vinculante que cria obrigações mútuas.
Conceito-chave: "Compromisso conjunto como base da ação coletiva".
Obra relevante: On Social Facts (1989).
Diferenças entre suas abordagens:
Filósofo | Foco Principal | Exemplo Prático |
Searle | Construção da realidade social | "O dinheiro só vale porque todos acreditam nele" |
Bratman | Planejamento racional e interdependência | "Um grupo que organiza uma festa juntos" |
Gilbert | Compromisso mútuo e obrigações coletivas | "Manifestantes que assumem um protesto como dever" |
Contexto Acadêmico:
Todos são professores em universidades de elite (Searle em Berkeley, Bratman em Stanford, Gilbert em UConn).
Seus trabalhos influenciam não só a filosofia, mas também ciências sociais, direito e teoria organizacional.
1. John Searle vs. Ritchie
Searle:
A realidade social existe porque os agentes atribuem funções coletivas a objetos/atos através da intencionalidade compartilhada.
Exemplo: O dinheiro só funciona porque todos aceitam coletivamente que um pedaço de papel tem valor.
Crítica de Ritchie:
Nem toda cooperação requer essa "crença compartilhada". Em organizações complexas, a estrutura hierárquica garante a coordenação, mesmo que os indivíduos não compreendam o propósito global.
Exemplo prático: Funcionários de uma fábrica seguem procedimentos operacionais sem saber como seu trabalho se conecta ao produto final.
2. Michael Bratman vs. Ritchie
Bratman:
Ação coletiva exige interdependência de planos individuais e compromisso mútuo.
Exemplo: Uma banda de música onde cada músico ajusta seu ritmo com base no que os outros estão fazendo.
Crítica de Ritchie:
Em sistemas com papéis bem definidos, a coordenação ocorre sem ajustes mútuos.
Exemplo prático: Em uma linha de montagem industrial, operários realizam tarefas específicas sem comunicação direta, guiados por manuais ou sistemas automatizados.
3. Margaret Gilbert vs. Ritchie
Gilbert:
Grupos são sujeitos plurais unidos por compromissos conjuntos que geram obrigações mútuas.
Exemplo: Um grupo de ativistas que se sentem obrigados a comparecer a protestos porque assumiram um compromisso coletivo.
Crítica de Ritchie:
Em organizações formais, as regras institucionais (não os compromissos) definem as responsabilidades.
Exemplo prático: Em uma corporação, um funcionário cumpre metas porque seu contrato exige, não por lealdade ao grupo.
Quadro Comparativo: Teorias Tradicionais vs. Ritchie
Aspecto | Bratman/Gilbert/Searle | Katherine Ritchie |
Base da cooperação | Intenções compartilhadas e crenças comuns | Estrutura organizacional e papéis |
Exemplo | Time de futebol com estratégia alinhada | Funcionários de uma multinacional |
Comunicação | Requer ajuste contínuo entre membros | Não necessária (sistemas substituem) |
Obrigação | Moral (compromisso mútuo) | Contratual/institucional |
Flexibilidade | Alta (adaptação dinâmica) | Baixa (processos fixos) |
Implicações da Crítica de Ritchie
Reducionismo da intencionalidade:
Mostra que nem toda ação coletiva requer "mente coletiva", apenas mecanismos sociais.
Impacto: Amplia o entendimento de cooperação para incluir sistemas burocráticos e tecnológicos.
Aplicações práticas:
Explica como empresas globais ou governos coordenam ações sem consenso (ex.: ONU, corporações com filiais em culturas distintas).
Limitações:
Não explica ações coletivas espontâneas (ex.: protestos sem liderança) ou grupos com forte identidade compartilhada (ex.: comunidades religiosas).
Diálogo Teórico (Exemplo Prático)
Cenário: Uma equipe desenvolve um software.
Visão tradicional (Bratman): Os programadores precisam compartilhar objetivos e ajustar mutuamente seu trabalho.
Visão de Ritchie: Basta que cada um cumpra tarefas definidas pelo gestor do projeto (usando ferramentas como Jira ou Trello), mesmo sem entender o projeto completo.
Por que essa discussão importa?
A crítica de Ritchie desafia noções filosóficas tradicionais e oferece uma lente para analisar sociedades modernas, onde:
A cooperação muitas vezes é mediada por tecnologia (ex.: algoritmos que coordenam entregadores de apps).
As relações são impessoais (ex.: plataformas digitais conectando estranhos).
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